terça-feira, 15 de dezembro de 2009




Arthur Azevedo, um dos maiores homens de teatro que este país conheceu, oferecia à população carioca, com suas revistas de ano, um "mapa teatral" da cidade, onde desfilavam, com humor e com ironia, os tipos e situações, muitas vezes absurdas, presentes no cotidiano da cidade. Eram recursos freqüentes nas revistas as alegorias políticas e a crítica, feita com mordacidade, à vida pública e política da Corte e do país. Cabe destacar que Arthur Azevedo era o nome mais conhecido entre vários outros autores que dedicavam-se ao gênero.

Com a proclamação da República, surge um novo grupo de autores – vários já atuantes durante a Monarquia – que vai confrontar-se ao modelo imposto pela elite republicana e fazer de sua área de atuação um foco de resistência a esse modelo. Em charges e caricaturas, no teatro musicado, nos periódicos humorísticos e no jornalismo ligeiro, esses "intelectuais boêmios" – como os definiu a historiadora Monica Velloso – tentaram corroer, pelo humor e pela comicidade, o modelo excludente imposto pela República.

O teatro de revista, gênero ligado às várias formas de teatro popular, nasce nos teatrinhos de feira, nos arredores de Paris no século XVIII. Nas feiras de Saint-Laurent e de Saint-Germain, os cômicos populares começam a montar espetáculos que passam em revista os principais acontecimentos teatrais do ano. Parodiavam, com o deboche e o escracho que se tornariam marcas do gênero, os grandes autores dramáticos em voga – Marivaux, Corneille, Racine. Com o passar do tempo, e por causa do grande sucesso de público, não somente os fatos teatrais, mas os principais acontecimentos do ano são revistos. A revista rapidamente sai da França e alcança popularidade em outros países da Europa.

A primeira das revistas brasileiras é As surpresas do Sr. José da Piedade, de Justiniano de Figueiredo Novaes, encenada em 1854. Incipiente no início, o gênero só teve uma nova montagem vinte anos depois, com a revista de ano de 1874, de Joaquim Serra, e só encontra a consagração com o primeiro sucesso de Arthur Azevedo, O mandarim, escrito em parceira com Lino Assunção, em 1884. Arthur Azevedo escreveu dezenove revistas, algumas delas de um estrondoso sucesso, e foi um dos autores mais importantes da primeira fase do gênero no Brasil, as duas últimas décadas do século XIX.

Embora as revistas de ano tivessem uma origem francesa, o modelo implantado no Brasil aproximou-se mais das revistas portuguesas – que tinham na caricatura pessoal seu ponto mais forte –, colaborando para uma maior influência desse modelo as freqüente visitas das companhias portuguesas ao Brasil. Assim, nossos autores preferiram exercitar a crítica social e política, afastando-se dos espetáculos mais bem coreografados e com excelentes números musicais, típicos das revistas francesas.

Portanto, o modelo consagrado no Brasil, é o da revista de ano: uma retrospectiva crítica, bem-humorada e musicada dos acontecimentos, fatos, eventos e costumes mais significativos do ano anterior. Como unificador dos quadros que se apresentavam isolados, um tênue enredo e a presença do compère: constituía-se ele não só na espinha dorsal do espetáculo, como, por parte dos atores, numa especialização profissional bem definida. Havia os cômicos que figuravam neste ou naquele quadro, em caracterizações diversas. E, por cima deles, com funções moderadoras, pairava o compère, não tão caricatural quanto os outros, assegurando a relativa continuidade do fio narrativo e conquistando o público por sua simpatia pessoal, sua facilidade de comunicação. Era menos uma personagem, ou uma abstração personificada, do que uma convenção do gênero, reconhecida e aceita como tal pelo público, para que em torno dele se pudesse ordenar a representação (Prado, 1986, p.259-60).

Como já disse, Arthur Azevedo é o maior nome entre os revisteiros que trabalharam em fins do século XIX e o começo do XX. Será ele quem praticamente definirá as convenções do gênero que serão inicialmente utilizadas no Brasil.

Valendo-se do lema da comédia Castigat ridendo morus (Rindo castigam-se os costumes), Arthur Azevedo utilizar-se-á dessas convenções específicas da revista – a caricatura viva, a tipificação, as alegorias – para retratar a vida pública e política da Corte e, posteriormente Capital Federal, e do país. Em razão das mudanças que sofre o Rio de Janeiro, no seu processo de modernização iniciado ainda no Império e agressivamente executado nos primeiros vinte anos da República, era "como se a história e as reformas se tivessem acelerado de tal maneira que a sociedade fluminense necessitasse de mapas teatrais renovados anualmente" – segundo Flora Sussekind (1986, p.8). Ainda segundo a pesquisadora, as revistas de ano irão se propor a "inventar um Rio de Janeiro e exibi-lo detalhadamente para um misto de morador atônito e espectador maravilhado ... mutações que o ajudam a reviver as mudanças citadinas e a acreditar nesta utopia de uma Capital capaz de centralizar a história" (ibidem, p.17). É, portanto, o espaço público o grande protagonista das revistas de Arthur Azevedo. E a população é "espectadora": tanto das revistas quanto das mudanças que ocorrem em sua cidade.

Na verdade, em seu esforço por captar em flagrantes a vida da capital federal, o teatro musicado vai além e recria os próprios cidadãos dessa cidade. A velocidade com que a cidade se modifica é tamanha que aproxima-se da ficção – sendo o ritmo vertiginoso das mudanças mais próximo das apoteoses cenográficas das revistas, burletas e mágicas do que de uma reforma política e urbanística.

Ainda segundo Sussekind, falando sobre Arthur Azevedo: "Suas revistas estão carregadas dos acontecimentos políticos que marcam o país, e normalmente se fazem acompanhar de nítidas tomadas de posição" (p.89).

Esse destemor em dar sua opinião, criticar práticas que julgava perniciosas e atitudes de homens público do autor maranhense é compartilhada pelo professor Antônio Martins de Araújo em artigo intitulado "Arthur Azevedo Homo politicus" (apud Brandão, 1994, p.87):
as revistas de ano do "mais carioca dos escritores maranhenses" não perdoam as roubalheiras oficiais, a exploração estrangeira, a falsa moral, em suma, as mazelas de uma sociedade em processo de estruturação, mas também não regateiam os aplausos aos amantes da justiça e da ética. A apoteose final da revista Cocota (1884) homenageia, ao som do hino nacional, nossas províncias pioneiras na libertação dos escravos: Amazonas, Ceará e Rio Grande do Sul.

Nas primeiras décadas do século XX, a revista deixa de ser somente uma retrospectiva de fatos acontecidos no ano anterior e passa a ser apenas revista de acontecimentos – ou seja, privilegia-se o enredo, ainda que frágil. E surge, principalmente, a revista carnavalesca, propiciando um importante intercâmbio entre o teatro e a música popular brasileira: as revistas lançam músicas de carnaval ou então aproveitam músicas que tenham sido sucesso nessa festa – como também em outras ocasiões.

Nessa fase, um grupo de intelectuais que discordava do modelo excludente de sociedade estabelecido pela elite passa a atuar no teatro musicado carioca. Esses intelectuais, que a historiadora Monica Velloso denomina "os humoristas boêmios", têm enorme atuação na crítica da "modernidade" imposta pelo projeto de cidade perpetrado
, sobretudo fazendo uso do humor como forma de expressão. Formado sobretudo por caricaturistas e homens da imprensa – Luiz Peixoto, J. Carlos, Kalixto, Raul Pederneiras, Bastos Tigre, Lima Barreto, Orestes Barbosa –,o grupo busca novos canais de integração e expressão social e, mesmo, de aprendizagem. Será nas ruas e não por meio de um movimento literário organizado que esses intelectuais procurarão viver e explicar a história dessa cidade. Assim, "o submundo, a marginalidade, a boemia e as ruas constituem espaço expressivo para se pensar a modernidade brasileira, notadamente a do Rio, onde a exclusão social seria vivenciada de forma mais aguda" (Velloso, 1996, p.29).

Ainda segundo Monica Velloso, esses intelectuais atuam como opositores ao modelo de sociedade que as elites tentam impor, descortinando um outro Rio de Janeiro; não o moderno, das luzes e de amplas avenidas, mas o cindido, esquecido e abandonado Rio de Janeiro real. A política, a história oficial, a literatura beletrista, a ciência e os avanços tecnológicos são vistos com descrédito e desconfiança
.

A obra desses autores – seja por meio de caricaturas e charges publicadas nos periódicos humorísticos, seja no teatro musicado ou em letras de música – retrata uma série de tipos populares das ruas do Rio – a população esquecida pelo excludente processo de modernização criado para o Rio de Janeiro e para todo o Brasil: mulatos pernósticos, tias baianas, prostitutas, valentões capoeiras, portugueses ricos ou coronéis do interior enlouquecidos por mulatas que os maltratavam com seus requebros. Seus ambientes são os clubes carnavalescos, as gafieiras, os cirquinhos, as quermesses, as pensões. Por intermédio de seus personagens, pode-se entrever um Rio não oficial e não europeu, e, sim, um Rio que se quer carioca.

Em suma, o teatro musicado brasileiro, em razão da rapidez com que poderia trabalhar seus temas e do engajamento de seus autores, também pode ser visto como um espaço de atuação política. Como uma crônica jornalística de sua época ou como instantâneos fotográficos de um país que procurava organizar-se, as revistas e burletas nos deixam um testemunho eficaz não somente de um Brasil, mas também das manifestações políticas de um grupo de autores que retrata uma grande parcela da população, destituída de canais de expressão sociais.

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